O marketing direcionado revolucionou diversas áreas atualmente, mas você sabe de onde ele veio? Celestino Nóbrega dá sua visão a respeito do tema.
Assim declarou o Papa Clemente VIII (1536-1605) ao provar pela primeira vez o café, uma bebida que continha uma substância ainda questionável na época, a cafeína: “Por Deus, esta bebida de satanás é tão deliciosa que seria uma lástima deixá-la para o uso exclusivo dos hereges. Vamos burlar o diabo, batizando-a”.
De acordo com a Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic), a bebida é apreciada de várias maneiras e faz parte do cotidiano brasileiro, pois está presente em 98,2% dos lares. Eu me pergunto de que maneira este instituto consegue dados tão requintadamente apurados, tendo como referência as pesquisas que daqui a pouco tempo começarão a nos importunar nas campanhas eleitorais. Voltando ao tema central – café descafeinado: talvez fosse interessante que tivéssemos políticos despolitizados.
Através de um mecanismo que merece explicação mais apurada, nós, em geral, adoramos o sabor oriundo dos chamados grãos de “ouro verde”, mas, ao mesmo tempo, relutamos em sorver a bebida dos deuses após o jantar por motivo óbvio: queremos cair no sono o mais rápido possível para não ficarmos revirando na cama.
Em 1820, a cafeína foi isolada dos grãos de café pela primeira vez por Friedlieb Ferdinand Runge, sendo que em 1906 Ludwig Roselius anunciou o café descafeinado no mercado pela primeira vez, por acreditar que seu pai havia morrido pelo excesso de consumo de cafeína. Ele passou então a procurar por um método simples que eliminasse o “veneno” do café e acidentalmente descobriu que, em uma carga de café que chegou na Alemanha por via marítima, algumas sacas foram encharcadas pela água salgada. Resultado: o mesmo sabor com menos cafeína. Em 1905, ele patenteou o método de aquecer os grãos no vapor e tratá-los com uma sequência de ácidos e bases.
Roselius concentrou o marketing de sua empresa no luxo de poder tomar café sem veneno. Nos anos 1920 e 1930, quando a República de Weimar (que precedeu o tenebroso Terceiro Reich) se tornou proeminente, o empresário tirou vantagem da nova onda de saúde e perfeição pregada pelos arianos, afirmando que o café descafeinado protegeria o coração e os nervos. A ideia atingiu o alvo de uma tal forma que o produto começou a fazer parte da propaganda do partido nazista.
Entretanto, nenhum café descafeinado é 100% isento de cafeína. Para ser categorizado desta forma, ele deve apresentar índices abaixo de 0,01%. Cientistas têm trabalhado arduamente para tornar possível colher um café que nasça naturalmente descafeinado. Conhecido como decaffito, a variedade desenvolvida no Brasil e baseada na espécie coffea charrieriana representa um tipo de grão natural sem cafeína.
No período da Segunda Guerra Mundial, a escassez de produtos industrializados fez com que alternativas viáveis viessem à tona. Costumava-se preparar uma fervura do vegetal chicória como substituição ao café. Até hoje, em algumas regiões do Brasil, quando alguém quer desqualificar um café em um botequim diz: parece água de chicória. Entretanto, cabe uma pergunta: que conexão teria o tema aqui abordado com a Ortodontia que praticamos hoje?
Vamos lá: conforme pudemos verificar na evolução do café descafeinado, a grande alavanca para que o produto chegasse ao status de hoje foi a “sacada” do tal marqueteiro alemão, que enxergou nos arianos do Terceiro Reich um comportamento que escancarou a porta para o marketing direcionado.
Seria a indústria da Ortodontia tão lucrativa quanto a do café descafeinado? De acordo com a publicação Fortune Business Insights, somente o mercado norte-americano de Ortodontia movimentou 4,06 bilhões de dólares em 2018, sendo que a projeção é atingir a estratosférica marca de 9,72 bilhões de dólares em 2022.
De forma similar à história do café descafeinado, a indústria da Ortodontia tem estrategicamente sondado o comportamento dos ortodontistas para que o alvo seja definido com clareza. E assim o fizeram: delinearam o alvo e o acertaram na mosca, com absoluta precisão. E como bons marqueteiros, emplacaram um nomezinho bonito para a atrocidade: DTC ou direct to consumer strategy.
É sabido que gigantes da indústria mantêm empresas sórdidas que nada mais fazem do que aplicar o “by-pass” nos ortodontistas: se travestem assumindo outra marca comercial para que o estrago não seja percebido pelos ortodontistas consumidores das marcas primárias.
Desgraça pouca é bobagem. Enquanto o irritante funk e o chacoalhar de lindas caixinhas marcam o compasso das dancinhas no TikTok, mais cai vertiginosamente a especialidade no poço sem fundo das falsas promessas.
Bem-vindos ao novo normal. Além do café descafeinado, os pacientes podem contar com a Ortodontia “desortodontizada”, ou seja, a Ortodontia sem ortodontistas.
Celestino Nóbrega
Program leader do Programa Internacional de Ortodontia da Universidade de Nova York (EUA); Professor associado clínico na Case Western Reserve University (Cleveland/OH, EUA); Coordenador dos cursos de especialização em Ortodontia da Facsete, São José dos Campos/SP. Orcid: 0000-0002-4961-1326.