Mordeu: dados consistentes e resultados milagrosos

Mordeu: dados consistentes e resultados milagrosos

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Celestino Nóbrega debate a importância da escolha de técnicas e materiais ortodônticos, como braquetes, fios e elásticos.


Mordeu era o apelido de um cara “mucho loco” que habitou rapidamente o planeta Terra. O nome dele era Tadeu, mas uma de suas peripécias rendeu o apelido que o imortalizou junto ao Panteão de celebridades de Pindamonhangaba (SP). Tadeu mordeu o rabo de uma vaca sagrada.

Em um sábado de sol, a galera do Mordeu alugou um caminhão para acampar e comer feijão junto às margens do Ribeirão Grande, bem ao lado de um povoado Hare Krishna, que não se sabe o motivo, mas escolheu Pindamonhangaba para assentar uma de suas maiores comunidades no mundo.

Ali pastavam livremente as garbosas vacas sagradas, cujo ruminar trazia algum movimento ao olhar de desdém e apatia com que observavam o mundo. Talvez a segurança por saber que jamais iriam para um matadouro garantia a elas a soberania refletida no desconcertante olhar blasé com que olhavam aquele grupo de moleques acampando ruidosamente no pasto.

A tradição das vacas sagradas nasceu com o hinduísmo. Os Vedas, coletânea de textos religiosos de cerca de 1500 a.C., comentam a fertilidade do animal e a associa a várias divindades. Outra escritura hinduísta fundamental, o Manusmriti, compilado por volta do século I a.C., também enfatiza a importância da vaca para o homem.

Nos séculos seguintes, foram criadas leis elevando gradualmente o status religioso bovino. No sistema de castas que ainda vigora na sociedade indiana, a vaca é considerada mais pura do que os brâmanes (indivíduos pertencentes à casta mais elevada dos sacerdotes) – por isso, não pode ser morta nem ferida e tem passe livre para circular pelas ruas sem ser incomodada. O leite, a urina e até mesmo as fezes do animal são utilizados em rituais de purificação.

A adoração, no entanto, não é unanimidade entre os hindus e suscita debates inflamados no país. Em seu livro The Myth of Holy Cow, o historiador indiano Dwijendra Narayan Jha, da Universidade de Delhi, sustenta a tese de que o hábito de comer carne era bastante comum na sociedade hindu primitiva e condena o “fundamentalismo em torno da santificação do animal”, imposto pelos principais grupos religiosos da Índia. Estes mesmos grupos, é claro, baniram o livro e recomendaram que os exemplares à venda fossem queimados. Ainda mais depois que o autor confessou o hábito de comer filé malpassado de vez em quando.

Pois bem, a preocupação com tudo aquilo que pode potencialmente nos intoxicar é de fato milenar. No entanto, parece que atualmente atingimos níveis absurdos e inimagináveis. E isso não se relaciona somente aos alimentos e bebidas, mas a alguns hábitos que possam refletir conivência com práticas tidas hoje em dia como politicamente incorretas.

O que particularmente me espanta é o olhar blasé que a maior parte das pessoas parece dispensar aos exageros. A palavra blasé é um adjetivo oriundo do idioma francês, que classifica a atitude cética de uma pessoa apática ou indiferente. Uma pessoa blasé pode demonstrar atitudes de apatia e indiferença porque sua capacidade de percepção de fatos notórios foi enfraquecida por excessos, por exemplo, aceitando como normais alguns fatos, como:

  • Pablo Vittar se apresentar no mesmo festival de rock que Guns N’ Roses;
  • Condenar um anúncio de biquíni por retratar uma mulher de biquíni;
  • Considerar unhas compridas e decoradas como apropriação cultural;
  • Usar xampu gluten free para deixar os cabelos mais sedosos e brilhantes;
  • Achar o máximo consumir kombucha, que não passa de chá preto apodrecido e fermentado por leveduras e bactérias;
  • Categorizar Mickey Mouse como um roedor assustador.


Desviar o olhar de dados diagnósticos consistentes simplesmente porque o paciente quer resultados rápidos e milagrosos pode ser também um exemplo da aplicação do olhar blasé das vacas sagradas da fazenda Hare Krisna de Pindamonhangaba. Os mecanismos que fazem com que ortodontistas dobrem seus joelhos perante a mediocridade também podem estar presentes na escolha de materiais e técnicas ortodônticas.

Levando o assunto para o campo da intoxicação por substâncias contidas em dispositivos de tratamento ortodôntico, tanto braquetes, fios e elásticos quanto alinhadores transparentes podem oferecer riscos aos pacientes. Muitos artigos científicos fortemente baseados em metodologias consistentes revelam que, por exemplo, a exposição contínua a metais, como o níquel, pode levar ao desencadeamento de mecanismos de intolerância, trazendo manifestações orais que causam desconforto e dor.

Por outro lado, o bisfenol A (BPA) é um componente químico com capacidade tóxica que tem sido amplamente utilizado na manufatura de materiais plásticos no setor alimentício e também no odontológico (selantes dentais, braquetes de policarbonato, compósitos restauradores e para colagem de acessórios, além dos alinhadores transparentes).

Devemos considerar que os pacientes passam por um período médio de dois anos de tratamento ortodôntico. Assim, os níveis plasmáticos de níquel podem trazer consequências trágicas, já que os fios e acessórios metálicos permanecem na cavidade oral durante 24 horas por dia. Igualmente, os alinhadores transparentes de marcas dúbias ou confeccionados com material inadequado no processo de prensagem das placas podem permanecer em boca por 22 horas.

Quanto às moléculas de BPA, há três formas de entrada no organismo humano através de procedimentos odontológicos: pela respiração, absorção pelo sistema digestivo ou até pela dentina, atingindo o tecido pulpar.

É importante lembrar que o BPA foi recentemente descrito como um disruptor endócrino xenoestrogenético, que mimetiza a expressão biológica de hormônios estrógenos naturais. A curiosidade vem de como estes efeitos deletérios foram descobertos: no início dos anos 1960, pesquisadores norte-americanos observaram que os ninhos das águias de um determinado parque nacional estavam contaminados com pesticidas impregnados com BPA e, por este motivo, as aves não somente punham menos ovos que a média de outras regiões, como também os poucos filhotes apresentavam desenvolvimento precoce.

Além dos alinhadores compostos por plásticos da categoria PetG, o poliuretano (PU) é ainda utilizado por determinados fabricantes. Basicamente, o PU é classificado como uma resina petroquímica que contém isocianetos. Se acaso houver desdobramentos que liberem isocianetos, devemos considerar que podem atuar como depressores respiratórios potentes, muito embora haja pelo menos três tipos de PU: TDI, MDI e PPDI, com diferentes níveis de possibilidade de toxicidade.

Parece óbvio que os ortodontistas devem estar atentos à qualidade e confiabilidade dos materiais utilizados pelos fabricantes, quer seja em braquetes, fios ou provedores de alinhadores transparentes.

Voltando ao Mordeu, certa manhã o encontrei na prefeitura de Pindamonhangaba. Muito feliz, ele me contou que havia arrumado um trabalho perfeito na prefeitura: motorista de Kombi. E o melhor, tinha que ir e voltar todos os dias para São Paulo, o que pode levar umas cinco horas. O detalhe é que Mordeu andava sempre de chinelos. Pensei comigo: “não deve ser fácil dirigir uma Kombi o dia todo usando havaianas”.

Mordeu tinha uma frieira no dedão do pé que, de tão grande, era até famosa na cidade e foi batizada de Greta. Quando ele ia para Ubatuba nos finais de semana, guardava a chave da Kombi dentro da frieira.

Fiquei intrigado com o entusiasmo dele quanto ao novo emprego e pedi para me explicar o motivo da alegria. Ele falou: “Eu encaixo a frieira bem na base da embreagem da Kombi e vou ouvindo Led Zeppelin enquanto coço com prazer a viagem toda”. Mordeu morreu muito cedo, assim como outras figuras de Pindamonhangaba. Sempre me lembro dele quando ouço a banda Greta Van Fleet, uma indicação do meu filho.

Confira outras edições da coluna “Ideias em movimento”, de Celestino Nóbrega.