Celestino Nóbrega recorre a renomadas obras fictícias, como Jaws (Tubarão), para explanar algumas das preocupações atuais dos ortodontistas.
O poeta Castro Alves, na minha humilde opinião o maior expoente da literatura brasileira, definiu a transitoriedade dos prazeres da vida em seu magnífico livro Espumas flutuantes. Seria como estar de dieta, ir a uma festa de aniversário e comer apenas um brigadeiro, só unzinho para matar a vontade.
Mais uma definição para o que pode ser classificado como um prazer transitório: o verão em Long Island, nos Estados Unidos. Passa rapidinho. Quando me dou conta, meu filho já está de volta aos estudos, a grama para de crescer, as folhas começam a cair, o céu escurece mais cedo e o humor das pessoas também.
Aproveitei o verão passado ao máximo. Fui convencido pelo meu professor de jiu-jitsu, o renomado mestre Carlos Silva, a comprar um caiaque. Aliás, minha primeira aula de jiu-jitsu ocorreu há dois anos, quando eu estava com 55 anos. Como não poderia ser diferente, toda primeira aula é memorável. Quem é que não se lembra do primeiro dia na escola primária, no ensino médio, no cursinho e na faculdade? Pois é, meu primeiro dia de aula de jiu-jitsu ficará marcado para sempre em minha memória e também nos arquivos radiológicos do Hospital de Port Jefferson, cidadezinha à beira-mar no estado de Nova York, onde moro. Mais adiante eu conto o motivo.
Populares em épocas de muita violência urbana, as lutas marciais ensinam autodefesa aos pacatos cidadãos, ou seja, é um conjunto de vários métodos que têm como objetivo neutralizar um ataque pessoal. As técnicas de defesa pessoal têm sido derivadas das artes marciais tradicionais, adaptadas para uso por pessoas comuns se defenderem em suas vidas normais. São utilizadas manobras simples evitando movimentos complexos, como bloqueios, retenções e alavancas para dominar o adversário o mais rapidamente possível, já que ao encurtar o tempo de combate diminui-se os riscos e deixa-se em segundo plano as diferenças físicas.
Não é tão complicado para qualquer pessoa adquirir e aplicar os conhecimentos adquiridos em um curso de autodefesa. Quero ver é alguém me superar naquilo que ocorreu no primeiro dia de aula de jiu-jitsu: fraturei uma costela sozinho, bem no início da aula, fazendo os rolamentos de aquecimento. Acho que por este feito inédito mereço ter minha foto emoldurada em todas as academias de jiu-jitsu do mundo, como o grandioso mestre Gracie. Afinal de contas, sou o precursor da técnica por mim intitulada como “autoataque” ou “ataque pessoal”, em contraponto à autodefesa ou defesa pessoal.
Voltando à questão da rapidez com que o verão passa no hemisfério norte, em maio deste ano eu mal podia esperar para colocar meu caiaque nas águas da baia de Port Jefferson. Porém, meu entusiasmo foi arrefecido imediatamente após a divulgação da notícia de que tubarões brancos enormes rondavam nossa baía. Pô, que saco! Amarguei o inverno todo esperando pelo verão, pôr do sol, caiaque na água e agora aparecem esses tubarões para cortar o meu barato. Mas, são coisas da natureza. Todos nós aceitamos com naturalidade as ocorrências e os perigos inerentes à pirâmide alimentar ditada pela hierarquia zoológica, em que há predadores e presas.
No entanto, há sempre uma agradável sensação de vingança quando ocorrem episódios inusitados nos quais uma determinada presa acaba atacando e vencendo a luta contra seu predador natural. Os autores e diretores de Hollywood já perceberam isso há cerca de um século.
Se você, assim como eu, estava neste planeta em 1977 e já tinha alguma capacidade de entendimento, também foi fortemente influenciado pelo clássico filme de Steven Spielberg: Jaws ou simplesmente Tubarão, como ficou conhecido no Brasil. Tamanha foi a capacidade de Spielberg em explorar o pavor gerado pelo grande tubarão branco nas praias do Cape Cod, em Massachusett s (Estados Unidos), que mesmo do outro lado do planeta, na praia das Toninhas, em Ubatuba (SP), nenhum moleque se aventurava a entrar na água naquele fatídico verão. Se você assistiu ao filme deve se lembrar muito bem da cena final. Se não assistiu, recomendo que o faça para ter ideia da precariedade de recursos com que as cenas foram filmadas, mesmo assim capturando a atenção dos expectadores e instigando tremenda sensação de pavor, muito bem realçada pela trilha sonora executada por apenas um violoncelo com notas graves e profundas – expondo a carne dilacerada da vítima às águas frias que, de forma inerte, assistiam o sofrimento com desdém e potencializavam a dor causada pelos nervos expostos à ação causticante do sal. Crueldade ou simplesmente instinto natural de um predador?
Acho que Spielberg resgatou o sentimento de fracasso que eu senti depois de ler ao clássico de Herman Melville, que neste ano completou incríveis 168 anos: Moby Dick. Coincidência ou não, ambas as histórias fictícias se passam em Nantucket, Massachusetts.
A intenção do autor foi, segundo estudiosos de sua obra, evidenciar o eterno conflito entre o homem e seu destino: a baleia representando o mal infinito por ter decepado a perna de um homem do mar (capitão Ahab), e ele a vontade do homem que se opõe às forças da natureza. O leitor percebe que a baleia branca é, antes de tudo, a concretização da ferocidade, da coisa horrenda que se revolta contra o ser humano.
A obra de Melville foi muito mal recebida pelo público de então. Já a de Spielberg, na qual o bem acaba vencendo o mal, foi e ainda é tida como um verdadeiro marco da indústria do entretenimento. A fórmula mágica do bem vencendo o mal nos últimos segundos do filme foi instituída com sucesso estrondoso.
Agora, entra em cena outra obra e um terceiro autor: O Velho e o Mar, do grandioso Ernest Hemingway. A narração da saga do pescador persistente que lutou bravamente até capturar o peixe de seus sonhos, mas que no final foi devorado por um tubarão na longa e sofrida trajetória de volta ao porto que, imaginava o iludido pescador, asseguraria um futuro tranquilo e pacífico.
Qual destas três obras mais se aproxima do que estamos presenciando em relação aos rumos que tomam nossa especialidade, a Ortodontia? A ferocidade do tubarão branco de Spielberg, que pode muito bem ilustrar a voracidade e o apetite insano das ideias concebidas pela indústria? A crueldade da baleia Moby Dick, que usa de todo e qualquer artifício em beneficio próprio? A decepção do pescador de Hemingway, derrotado pela própria ganância? Que mundo maluco.
Por um lado, há ortodontistas que dobram os joelhos perante a mediocridade dos pedidos incoerentes de pacientes por técnicas miraculosas, sendo por fim satisfeitos por resultados pífios. De outro lado, a indústria oferecendo “tratamento ortodôntico” diretamente aos pacientes, sem sequer considerar a necessidade óbvia de um cirurgião-dentista.
Castro Alves é o grande representante da poesia condoreira, estilo literário da escola romântica definido pela simples observação passiva, na qual o narrador, tal qual um condor altivo e soberano, com a visão aguçada de uma ave de rapina, constata os fatos lá do alto do céu, sem a menor pretensão de interferir na cena de horror que se passa cá embaixo.
Que bom seria se ele pudesse escrever um enfático poema dirigido a nós ortodontistas – completamente cegos – descrevendo o mar sangrento que vê lá de cima.
Celestino Nóbrega
Program leader do Programa Internacional de Ortodontia da New York University (Nova York, Estados Unidos); Professor associado clínico na Case Western Reserve University (Cleveland/OH, Estados Unidos); Coordenador dos cursos de especialização em Ortodontia da Facsete, São José dos Campos/SP.
Orcid: 0000-0002-4961-1326.