Covid-19: o paradoxo enxaguante bucal

Covid-19: o paradoxo enxaguante bucal

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Celestino Nóbrega reflete a importância do enxaguante bucal, que se tornou um recurso de altíssimo valor e ótima fama, devido à pandemia de Covid-19.

Na moderna indústria farmacêutica, as cores do arco-íris falam mais alto. Basta observar as embalagens atrativas e, principalmente, as cores escolhidas para os medicamentos líquidos: desde o pink do antiácido, passando pelo verde-vivo do xarope noturno, até o azul-neon do antitérmico. Com os enxaguatórios e colutórios bucais não haveria de ser diferente.

Vou fazer aqui um breve relato sobre a história dos antissépticos e o uso das cores na indústria farmacêutica tendo como referência o conhecido Listerine. O líquido original de cor marrom-dourada foi criado em Saint Louis (Estados Unidos) em 1879, apresentado como um agente de limpeza para dentistas e médicos. O cirurgião-dentista e inventor Joseph Lawrence nomeou sua criação em homenagem a Joseph Lister, o famoso cirurgião inglês pioneiro a “levantar a lebre” no que diz respeito à necessidade, hoje óbvia, dos cuidados antissépticos pré e pós-cirúrgicos.

Nascido em 1827 na cidade de Upton, na Inglaterra, Lister diplomou-se em 1852 em Medicina e tornou-se cirurgião na Enfermaria Real de Glasgow (Escócia) em 1861. Trabalhando neste departamento por oito anos, inicialmente ficou impressionado com a alta taxa de mortalidade pós-operatória. Seus colegas culpavam os miasmas (vapores nocivos) do hospital como a exclusiva causa das infecções. Em 1865, após ler um trabalho de Louis Pasteur, Lister teve a ideia-chave: se as infecções eram causadas por micróbios, o melhor método para preveni-las seria extinguir esses microrganismos antes que entrassem na ferida aberta. Assim sendo, Lister não somente lavava cuidadosamente as mãos antes de qualquer intervenção, como se assegurava de que os instrumentos e o material de proteção individual estivessem completamente higienizados. O resultado: a taxa de mortalidade pós-operatória caiu de 45% para 15% no primeiro ano em que os cuidados dele foram adotados rotineiramente.

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O primeiro artigo de Lister sobre cirurgia antisséptica foi publicado em 1867, mas suas ideias não foram de pronto aceitas. Casado, mas sem fi lhos, Lister viveu até os 85 anos de idade e morreu em 1912 na cidade de Walmer, na Inglaterra. As inovações propostas por ele revolucionaram o campo da Cirurgia e salvaram milhões de vidas. Portanto, foi muito acertada a decisão do cirurgião-dentista Joseph Lawrence ao nomear o enxaguatório como Listerine para homenagear o pai da antissepsia – e, ao mesmo tempo, uma estratégia de marketing precisamente elaborada para trazer credibilidade ao produto.

E quanto à cor marrom-dourada do Listerine? Vejamos o que nos revela a história. As vendas do produto foram modestas e decepcionantes, até que em 1920 uma palavra idealizada pelos gênios do marketing veio à tona: halitose. Uma ostensiva e insistente campanha, que durou exatos sete anos em jornais e revistas, mostrava homens e mulheres tristes e cabisbaixos sendo segregados pela sociedade dos anos 1920. Motes como “todos falam de seu mau hálito pelas suas costas” ou “você é impopular sem saber a causa?” foi a estratégia focada no constrangimento enfrentado pelos afetados pela “halitosis”. O resultado foi que, na época, as vendas anuais do produto saltaram de US$ 115 mil para US$ 8 milhões.

Atualmente, a cor mais popular do enxaguante nos Estados Unidos é o gold brown, seguido de perto pelo blue cool mint. Diz a lenda que o inventor escolheu corantes dourados para que o produto se assemelhasse à coloração do uísque, reforçando a homenagem a Lister, que ocupou por oito anos a diretoria do Depto. de Cirurgia do Hospital Real de Glasgow (Escócia), a meca escocesa dos apreciadores do néctar dourado. Verdade ou mentira, o fato é que o produto teve altas expressivas de vendas durante a lei seca nos Estados Unidos, nos anos 1930.

No entanto, em épocas atuais de economia destroçada pela pandemia causada pela Covid-19, o volume de vendas na ordem de US$ 30 bilhões anuais oriundo deste segmento caiu 20%. Por curiosidade, além da escassez de recursos financeiros por parte dos consumidores, quais seriam os motivos desta queda vertiginosa? Algumas hipóteses: 1) As pessoas não têm a necessidade de impressionar presencialmente através de um hálito fresco e agradável; 2) A não necessidade de encontros pessoais para entrevistas de empregos, ocasião em que a halitose pode ser um fator de escolha entre os candidatos em fase final de seleção; 3) Primeiros encontros de namoro não acontecem em ambiente real, mas em plataformas específicas e em redes sociais.

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Surge, então, o paradoxo: se por um lado há vários fatores que desencorajam o consumo deste tipo de produto, por outro lado, a pandemia é por si somente uma excelente oportunidade para o combate aos germes. Antigamente, as pessoas usavam o enxaguante de forma velada, escondidas e envergonhadas para disfarçar que tinham consciência de seu próprio mau hálito.

No último verão de 2020, a pesquisa do fabricante mostrou claramente que hoje os usuários do produto se mostram orgulhosos em utilizá-lo sem pudor, já que um estudo revelou que enxaguatórios que contêm álcool e óleos essenciais – como mentol, timol e metil salicilatos – podem matar o vírus responsável pela pandemia atual. Porém, já que o temido vírus se aloja em pulmões e vias aéreas superiores, a empresa alerta em seu website: “O enxágue com antisséptico bucal deve ser usado apenas objetivando a prevenção de problemas orais comuns, tal como o mau hálito”.

Recentemente, eu passei por uma experiência pessoal de saúde: fui submetido a uma moderna cirurgia robótica de médio porte com acesso abdominal. Chamou-me atenção o protocolo de preparo pré-cirúrgico, cujo passo final foi um banho de chuveiro usando um sabonete líquido à base de clorexidina. Em resumo: o enxaguante, que antes era um produto sem glamour, se tornou um recurso de altíssimo valor e ótima fama, devido à pandemia.