“Efeito borboleta”: Celestino Nóbrega analisa como uma sopa de morcegos na China repercute no mundo todo.
Acordei bombardeado pelo bater das asas de uma borboleta. Claro que o farfalhar do bater de asas de um pterodáctilo talvez devesse fazer muito mais barulho, mas estou em Nova York e, hoje, dia 12 de março de 2020, não é o período Jurássico.
O “efeito borboleta” forneceu bases para a formulação de equações matemáticas utilizadas pelo meteorologista Edward Lorenz na década de 1960. Explico: você se lembra do dia em que fez a prova do vestibular que abriu as portas da sua graduação em Odontologia? Imagine que naquele dia um prego tivesse furado o pneu do ônibus que você usou para ir ao local da prova. Você teria ficado de fato desconsolado, porém digamos que você tivesse entrado em outra faculdade. Você teria convivido com outras pessoas, formado outras amizades e talvez até casado com uma pessoa diferente. Seus filhos e netos poderiam ter sido outros.
Se você é mais jovem, talvez não tenha precisado fazer a inscrição no vestibular de forma presencial e tenha feito on-line. Imagine que neste dia seu notebook, com sistema operacional Windows, tivesse dado um pau do tipo “blue screen”, daqueles que faz o mais pacato dos monges tibetanos soltar um palavrão mais cabeludo que o Tony Ramos.
Em resumo, sua vida está sujeita a mudanças radicais de rumo, quer seja devido a um prego que furou o pneu do ônibus que você tomou para chegar no local do vestibular ou a um problema no notebook, que teriam dado início a uma sequência de eventos que alterariam radicalmente aquilo que você vive hoje.
Este tipo de imprevisto começou a ter conotação científica quando a Teoria do Caos veio à tona. Hoje, é uma lei muito importante para os físicos teóricos, presente na essência de tudo o que nos cerca. Reside na ideia central de que uma aparente e inadvertida alteração no início de uma cadeia de eventos possa trazer consequências enormes e absolutamente desconhecidas no futuro. Particularmente, eu entendo que estas alterações possam ocorrer por um fato físico (um prego) ou por uma tomada de decisão.
Tomadas de decisão podem definir ou redefinir nosso futuro, talvez muito mais do que um prego. Em um dia tranquilo durante o inverno de 1960, o meteorologista americano Edward Lorenz testava um programa de computador que simulava os movimentos das massas de ar.
Ele percebeu que a questão era extremamente multifatorial, pois ao suprimir algumas casas decimais da base de cálculos esperava que o resultado final fosse pouco alterado. No entanto, a alteração foi muito expressiva, equivalente ao prego que furou o pneu do ônibus, ou seja, alterando por completo os resultados desencadeados pelas massas de ar ao redor do globo terrestre. Para Lorenz, o ocorrido seria “como se o bater das asas de uma borboleta no Brasil causasse um tornado no Texas (Estados Unidos) algum tempo depois”. Assim surgiu o chamado “Efeito borboleta”.
As equações que explicam o comportamento de movimentos imprevisíveis originam gráficos conhecidos por fractais, na verdade figuras de geometria muito doidas e com infinitos detalhes. O pesquisador Mandelbrot, da Universidade Yale (Estados Unidos), mostrou algo muito surpreendente: equações exatamente idênticas podem representar fenômenos aparentemente imprevisíveis (caóticos) que não têm nada em comum uns com os outros. Portanto, parece haver uma estranha e imperativa ordem por trás de todo este aparente caos.
Voltando ao início da nossa conversa: ontem fui dormir sob o alarde feito no estado de Nova York sobre a pandemia causada pela facilidade de transmissão do coronavírus. Tudo em quarentena: escolas fechadas, idosos isolados nos asilos e sem poder receber visita, inúmeros congressos desmarcados e festas postergadas, expressa recomendação para que ninguém viaje para lugar algum. Viajar de navio então, nem pensar.
De fato, o mundo se tornou um habitáculo diminuto e ao mesmo tempo complexo para conseguirmos entender. Vejamos a sequência de alguns fatos: um chinês toma uma sopa de morcegos, Trump ataca o Irã, as florestas da Austrália ardendo em chamas e, no Brasil, a Anitta balança as cadeiras. Teriam esses eventos conexões diretas?
Cai radicalmente o preço do petróleo, os índices das bolsas de valores despencam no mundo todo, a previsão do crescimento da economia mundial é revista para patamares pessimistas. Os hábitos das famílias mudam e todos devem ficar em casa. Enquanto alguns choram, outros vendem lenços para enxugar as lágrimas. Assim é e sempre será.
Mas, tudo por conta de um chinês esfomeado ou quem sabe um gastrossadomasoquista que decidiu tomar uma sopa de morcegos? Qual será o próximo evento que se desdobrará em consequências globais tão trágicas?
Teve um período em minha vida que houve a infeliz coincidência que redundava no binômio que reforçava uma fome devastadora: a época em que eu morava em república durante a faculdade. A junção de dois fatores: o apetite inerente a um jovem de 18 anos e a larica. Um dia cheguei à noite na república e, como sempre, era necessária muita criatividade para preparar o que comer. Lembro-me que estava com uma fome daquelas. Coincidentemente, estava também com muita tosse, fruto da vida de ébrio de quem dava aulas no cursinho pré-vestibular à noite após o dia todo na faculdade de Odontologia. Claro que sempre rolava uma festinha básica a qualquer dia da semana, tipo das 23h até 5h. Durante o preparo do manjar dos deuses que aplacaria minha fome atroz, uma grande ideia me veio mais rapidamente que um raio: quando estava preparando o miojo, não exatamente cheio de mimimis como os masters chefs dos dias de hoje, de súbito percebi em cima da geladeira (que não funcionava) um vidro de xarope tira-tosse. Pois ali, naquele momento histórico, criei minha obra-prima: miojo reduzido no molho de xarope tira-tosse. Tudo muito levemente harmonizado por uma taça (de plástico) de groselha vitaminada Milani.
Pode parecer engraçado, mas para aquele momento foi a combinação perfeita: matei a fome e parei de tossir. E, com certeza, não houve queda na bolsa de valores.
PS: caso tenha interesse, conheço uma receita de risoto de cogumelos ao alho com pastilhas Valda de hortelã. É chique e não provoca mau hálito.
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Celestino Nóbrega
Program leader do Programa Internacional de Ortodontia da New York University (Nova York, Estados Unidos); Professor associado clínico na Case Western Reserve University (Cleveland/OH, Estados Unidos); Coordenador dos cursos de especialização em Ortodontia da Facsete, São José dos Campos/SP.
Orcid: 0000-0002-4961-1326.