Celestino Nóbrega alerta: movimentar dentes em plataformas digitais de alinhadores não é como jogar videogame.
Temos um grupo no WhatsApp muito interessante. Fiquei literalmente viciado nele, onde trocamos informações interessantes sobre Ortodontia e “otras cositas más”. O grupo é formado por ortho boys and girls e segue a regra básica de que ali se compartilha somente Ortodontia e bom humor. Minha esposa não entende nada quando fico rachando de rir no final do dia. O grupo é caracterizado por um processo abrangente de “tiração de sarro” entre os componentes, com sacadas rápidas cada vez que alguém faz um post. Por exemplo, quando o Gabriel (um dos membros) inocentemente postou uma foto dele abafando em um curso na Universidade de Nova York, com um penteado estilo Playmobil e uma gravata que parecia forro de caixão.
A maior parte dos integrantes do grupo tem por volta de 30 anos de idade, alguns poucos com 40 ou mais e alguns coroas beirando os 60, que é o meu caso. E tem o Barba, grande amigo palmeirense que já estava na praia quando Cabral ancorou na terra brasilis. Quando ele terminou a especialização em Ortodontia, o Mar Morto estava ainda apenas com uma pequena indisposição; e quando defendeu a dissertação do mestrado em Ortodontia, o Pão de Açúcar era só um morro de cupim. Na banca de doutorado do Jura estavam Angle, Steiner e Tweed. Brincadeiras à parte, o Jura é de um bom humor contagiante e sabe tocar a vida e a Ortodontia como poucos, esbanjando jovialidade.
Além da diversidade em relação às idades, o interessante é que o grupo integra ortodontistas de várias regiões do Brasil. Sinto-me lisonjeado por ser talvez o único que mora em outro país. A maior parte, portanto, foi criança ou adolescente nos anos 1990 – definitivamente a década mais bizarra de todas, marcada por programas infantis de TV totalmente inapropriados, brinquedos esdrúxulos e atitudes midiáticas até hoje intrigantes. Mas, todos sobreviveram e se tornaram excelentes ortodontistas.
Eu só me dei conta da bizarrice dos anos 1990 recentemente, pois naquela época eu estava na fase de consolidação do meu aprendizado, trabalhando e estudando muito. Tudo me parecia normal e só acordei no final do período, exatamente em 1998, quando meu filho Pedro nasceu.
Tudo era normal: levar revólver de espoleta na escola para assustar as meninas e tirar onda; criança dançando na boca da garrafa e cantando “é o kibe”; Silvio Santos jogando aviãozinho de dinheiro no domingo de manhã e à tarde torturando crianças dentro do foguetinho; cigarrinhos de chocolate; e por aí vai.
Os apresentadores Eliana e Gugu lideravam a prateleira de brinquedos que não faziam o menor sentido. Por exemplo, na máquina de fazer chicletes da Eliana a criança tinha que inserir chiclete para fabricar chiclete. O boneco do Fofão era possuído pelo demônio. O bonequinho “The Punisher” exibia um pênis-foguete-atômico. Xuxa comandava a criançada com autoridade digna do General Newton Cruz, tripudiava no anão Praga e as paquitas saíam na capa da revista Playboy. E no finalzinho do programa da Xuxa, o He-Man dava uns conselhos que ninguém ouvia.
Os programas de televisão exibiam personagens de dois tipos: mulheres muito gostosonas ou monstros aterrorizantes. Tiazinha, Carla Perez, Eliana, Feiticeira e, por outro lado, a Porta dos Desesperados do Sérgio Malandro, o Lobo Mau do Mundo da Lua e o Professor Tibúrcio do Programa Rá-Tim-Bum são personagens que certamente povoam os sonhos eróticos ou os pesadelos dos jovens ortodontistas do meu grupo do WhatsApp.
Melhor nem entrarmos no quesito músicas: concurso para eleger a Carla Perez mirim; os Mamonas Assassinas passavam a mão na bunda e não comiam ninguém. Tudo normal nas tardes de domingo. E a banheira do Gugu. Ah, a banheira do Gugu… dava tanta audiência e tirava tantos pontos de audiência da Globo que o Faustão criou o “Sushi Erótico” no mesmo horário de domingo à tarde, só para tentar desbancar o SBT. A banheira do Gugu sintetiza tudo o que rolou na década de ouro do bizarro desapercebido.
A molecada dos anos 1990 não tinha peixinho no aquário, criava Tamagotchi. Ostentação era ouvir um som no walkman amarelo da Sony ou receber mensagens por pager, que era encaixado no cinto e denotava poder e modernidade. Agenda eletrônica, relógio Champion com várias pulseiras… tudo isso era coisa de outro planeta.
Enquanto isso, eu já era um ortodontista cheio de dívidas e tinha um Corcel II vermelho. A molecada dos anos 1990 se transformou em excelentes ortodontistas que hoje compõem nosso grupo de WhatsApp. São profissionais que tiveram uma educação eletrônica norteada principalmente pela evolução dos videogames.
Porém, o Ministério da Saúde adverte: fumar cigarrinhos de chocolate faz mal à saúde e movimentar dentes em plataformas digitais de alinhadores não é como jogar videogame! Hoje, você pode ordenar: Alexa, open banheira do Gugu. Mas, acredite, ainda não dá para pedir: Alexa, move teeth to the right position!
Celestino Nóbrega
Program leader do Programa Internacional de Ortodontia da New York University (Nova York, Estados Unidos); Professor associado clínico na Case Western Reserve University (Cleveland/OH, Estados Unidos); Coordenador dos cursos de especialização em Ortodontia da Facsete, São José dos Campos/SP.
Orcid: 0000-0002-4961-1326.