Celestino Nóbrega e Rogério Tupinambá apresentam caso clínico com o auxílio de diagnóstico tridimensional em tratamento ortodôntico com queixa da estética facial.
A Odontologia tem como definição o estudo, diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças, distúrbios e condições da cavidade oral, mais comumente na dentição, mas também na mucosa oral, de estruturas e tecidos adjacentes e relacionados particularmente à área maxilofacial¹ . Seu escopo não se limita aos dentes, incluindo outros aspectos do complexo craniofacial, como a articulação temporomandibular e outras estruturas de apoio musculares, linfáticas, nervosas, vasculares e anatômicas. Baseando-se nestes princípios, o diagnóstico de toda patologia e condição associada ao complexo estomatognático faz parte do escopo da prática odontológica e, por consequência, da prática ortodôntica.
Na contramão da norma comum da lentidão da implantação prática de descobertas e inovações tecnológicas nas áreas da Saúde, o uso de raio X em condições clínicas foi realizado apenas três meses após o professor de física alemão Wilhelm Conrad Röntgen o ter descoberto. Foi usado pela primeira vez por John Hall-Edwards, em Birmingham, na Inglaterra, em 11 de janeiro de 1896, quando ele radiografou uma agulha presa na mão de um colega. Em 14 de fevereiro de 1896, Hall-Edwards também se tornou o primeiro a usar raio X em uma cirurgia².
Assim como anamnese, exame clínico, modelos de gesso e montagem em articulador, as radiografias fazem parte do arsenal de diagnóstico em Odontologia desde o uso rotineiro nos consultórios por todo o mundo moderno. Apesar da variedade, estas ferramentas ainda são precárias perto da vastidão do domínio de conhecimento do cirurgião-dentista. Assim como na Medicina, a evolução tecnológica permitiu que o espectro de conhecimento de domínio odontológico fosse coberto e corretamente avaliado para que diagnósticos mais precisos e tratamentos mais assertivos fossem propostos, aumentando o índice de sucesso.
Apesar desta evolução ter proporcionado uma abordagem mais ampla do sistema estomatognático, poucos são os profissionais que utilizam cotidianamente ferramentas diferentes das utilizadas há 80 anos, possivelmente pela dificuldade de acesso à tecnologia ou por desconhecimento de como utilizar adequadamente estas tecnologias. Por outro lado, o que se vê é o uso de tecnologia de ponta, como scanners intraorais, como única ferramenta de diagnóstico e planejamento em detrimento a ferramentas mais abrangentes e que permitem acesso a informações relevantes, negligenciando assim os demais componentes de um diagnóstico completo e assertivo.
Dentre estas ferramentas, uma das mais utilizadas – e cuja popularização permitiu o desenvolvimento de protocolos específicos para a Ortodontia e para a Cirurgia Bucomaxilofacial – está a tomografia computadorizada. Apesar de sua relativa popularidade, ainda há receio quanto ao uso rotineiro, levando inclusive à contraindicação por entidades internacionais de classe odontológica, que alegam possíveis riscos à saúde por exposição excessiva à radiação. O grande responsável pela disseminação desta ideia foi o artigo de 2012 da revista The Lancet, que correlacionava maior risco de desenvolvimento de leucemias e tumores de cérebro em crianças com idade inferior a nove anos submetidas a tomografias de crânio³.
Há que se entender que existem diferentes tipos de tomografias utilizadas na Odontologia, que se distinguem em dois tipos principais, diferenciando-se pelo formato geométrico da aquisição de imagens: 1) a fan beam ou tomografia computadorizada tradicional (TC); 2) o cone-beam ou tomografia computadorizada de feixe cônico (CBCT) ou tomografia computadorizada volumétrica (TCV). Além disso, os aparelhos, o princípio pelo qual se obtém a imagem, o custo dos equipamentos e, principalmente, a dose de radiação necessária são bastante distintos4.
Para exemplificar e comparar a quantidade de radiação da TC versus a CBCT, utilizando-se a escala de radiação de dose equivalente (miliSievert – mSv), em que a dose de exposição natural diária é de 0,008 mSv e a anual é de 3 mSv, uma radiografia periapical simples produziria menos que 0,008 mSv e uma panorâmica digital entre 0,014 e 0,024 mSv. Uma CBCT de face de 13 x 16 cm de aquisição produz 0,087 mSv, semelhante aos 0,080 mSv de um raio X de tórax. Já uma CT de tórax produz 10 mSv, dose equivalente a mais de três anos de radiação natural5.
A qualidade das imagens tomográficas obtidas tem relação direta com dois fatores específicos das tomografias, o voxel e o FOV. Voxel é a menor unidade cúbica formada pela reconstrução da imagem pelo software, podendo variar de 0,2 a 0,8 mm de face cúbica, mas na maioria dos tomógrafos o valor de 0,4 mm é o mais comum. Quanto menor for o voxel, mais nítida será a imagem e maior será a quantidade de radiação necessária. Já o FOV (field of view, do inglês “campo de visão”), diz respeito ao tamanho da imagem total gerada pelo feixe de raio X. Quanto maior for o FOV, maior será a amplitude de imagem gerada, abrangendo maior quantidade de estruturas anatômicas.
Outro grande diferencial das tomografias é a possibilidade de, por meio de softwares específicos, trabalhar a imagem bruta obtida, tornando-se possível a reconstrução das imagens nos três diferentes planos do espaço. Deste modo, criam-se imagens volumétricas tridimensionais com distorção mínima da realidade, possibilitando um entendimento muito mais amplo das estruturas e permitindo avaliações que seriam impossíveis com radiografias comuns (bidimensionais).
Assim, pode-se listar de modo sucinto como as diferentes áreas da Odontologia usufruem desta ferramenta:
- Periodontia: com imagens de voxel reduzido, é possível determinar o volume ósseo em cada uma das faces de cada elemento, sem sobreposições, e selecionar áreas doadoras de tecido conjuntivo para enxertos gengivais6;
- Endodontia: possibilidade de determinar a presença de canais supranumerários ou acessórios, antes invisíveis nas radiografias;
- Cirurgia Bucomaxilofacial: simulações e planejamentos cirúrgicos precisos e minimamente invasivos, além de uma previsibilidade muito maior, com menor morbidade pós-operatória, localização e relacionamento de dentes não irrompidos com áreas circunvizinhas;
- Implantodontia: planejamento e determinação da melhor localização, eixo de inserção, necessidade de enxertos, variações anatômicas e prototipagem de guias cirúrgicos;
- Ortodontia: reconstruções tridimensionais possibilitando avaliações comparativas de simetrias e individualização das análises craniométricas, sem riscos de sobreposições e mensurações imprecisas das estruturas de interesse, avaliação entre relacionamento dentário e rebordos alveolares7;
- Disfunção das ATMs: avaliação precisa da anatomia condilar e de fossa glenoide, além da investigação de patologias, como processos inflamatórios degenerativos e hiperplasias, muitas vezes assintomáticos;
- Estomatologia/Patologia bucal: investigação de lesões intraósseas incipientes e diagnósticos diferenciais, muitas vezes sem a necessidade de biopsias.
Além disso, ainda é possível associar à imagem tomográfica as imagens geradas por scanners intraorais, suprindo um fator limitante das tomografias, sua acuidade na reprodução da anatomia dentária, especialmente em dentes com restaurações metálicas, pinos intrarradiculares, implantes e aparelhos fixos. Outra possibilidade é a impressão das reconstruções volumétricas em modelos tridimensionais prototipados, para estudo, e em forma de biomateriais, para enxertia, guias cirúrgicos e placas interoclusais.
Além das indicações específicas, como descrito anteriormente, a inter-relação das diferentes especialidades se torna mais simples e dinâmica com o uso das tomografias. Para exemplificar esta inter-relação, o caso clínico a seguir demonstra como a Ortodontia, a Cirurgia Ortognática e a Reabilitação Protética por meio de implantes podem se beneficiar deste recurso.
Caso clínico
Uma paciente com 42 anos de idade se apresentou para tratamento ortodôntico queixando-se da estética facial, da dificuldade em vedar passivamente seus lábios, da necessidade de reabilitação dos espaços edêntulos presentes por perdas dentárias e de roncos durante o sono (Figuras 1 e 2).
Com o auxílio do diagnóstico tridimensional, por meio de protocolo tomográfico SYM 3D RT, da empresa 3Di, concluiu-se que se tratava de uma paciente Classe II esquelética (Figura 3) com excesso vertical de maxila, retrusão mandibular por falta de crescimento mandibular adequado (Figura 4), além de leve assimetria de base mandibular (Figura 5), braquicefálica (Figura 6), com dentes superiores e inferiores em condição de compensação da relação esquelética de Classe II (Figura 7). Especialmente nos dentes inferiores, havia grande vestibularização e protrusão (Figura 8). Também apresentava vias aéreas com volumes de constrição com valores inferiores aos considerados saudáveis (Figura 9). Tais características levaram a um planejamento que incluiu preparo ortodôntico, cirurgia ortognática mandibular e subsequente reabilitação dos espaços edêntulos com coroas protéticas sobre implantes.
O tratamento proposto envolveu o preparo pré-cirúrgico ortodôntico com a utilização de ancoragem esquelética com miniplacas, para impacção maxilar e controle vertical, assim como miniplacas inferiores para redução da projeção dos dentes inferiores e adequação na sínfise mandibular (Figuras 10 e 11).
A fase cirúrgica teve início após 12 meses de preparo ortodôntico e consistiu na cirurgia de avanço mandibular e mentoplastia (Figura 12), por conta da limitação da sínfise em permitir um maior movimento de raízes devido às suas características e espessura (Figura 13). A fase ortodôntica pós-cirúrgica promoveu o correto engrenamento dentário e a adequação dos espaços protéticos para a realização dos implantes dos dentes 25 e 46 (Figuras 14 e 15). O resultado final promoveu o correto posicionamento dos tecidos moles da face, entregando um perfil mais harmônico, além da possibilidade de reabilitação favorecida pelo preparo ortodôntico adequado, com estética e função devidamente restabelecidas.
Independentemente da especialidade, o uso das tomografias permite que, em um único exame, o paciente possa ser avaliado integralmente, oferecendo uma abordagem interdisciplinar efetiva e responsável, que visa à correção do conjunto de problemas que pode estar compondo uma queixa inicial aparentemente simples, mas que agora, com uma avaliação que abrange toda a gama de conhecimento do escopo odontológico, permite um tratamento baseado no diagnóstico multidisciplinar – e não somente na queixa principal, levando à resolução efetiva e, consequentemente, mais assertiva e longeva.
Concluiu-se que, por mais tecnológica e abrangente que seja a ferramenta de diagnóstico, sua eficiência será sempre dependente do conhecimento e da capacidade de interpretação do profissional e de sua equipe. Somente assim a tecnologia deixa de ser supérflua para ser elemento cotidiano e indissociável à prática clínica.
Coordenador:
Celestino Nóbrega
Program leader do Programa Internacional de Ortodontia da Universidade de Nova York (EUA); Professor associado clínico na Case Western Reserve University (Cleveland/OH, EUA); Coordenador dos cursos de especialização em Ortodontia da Facsete, São José dos Campos/SP.
Orcid: 0000-0002-4961-1326.
Autor convidado:
Rogério Tupinambá
Especialista em Ortodontia, doutor e mestre em Biomateriais e Materiais Biocompatíveis – FEG/Unesp; Professor de curso de especialização em Ortodontia – Ortogeo; Professor convidado do curso de mestrado em Ortodontia – SLMandic.