Celestino Nóbrega faz um paralelo da atuação clínica do ortodontista com situações cotidianas.
Parece mel, tem cor de mel, fica na prateleira do supermercado ao lado do mel, mas não é mel. É somente açúcar diluído em água, sendo que mais de 75% da fórmula compreende açúcar invertido e glucose de milho.
Na embalagem, é paradoxalmente indicado aos pais e mães como uma fonte saudável e recomendável de energia. Porém, de forma unânime, os pediatras instruem os pais para que bebês menores de dois anos de idade não consumam açúcar – e que o consumo pelas crianças a partir de dois anos de idade seja moderado. Para ter uma visualização prática, uma colher de sopa corresponde a 16 g de açúcar.
Já o açúcar oriundo dos carvalhos, cujas folhas se tornam diáfanas e amarelas no início do outono e vermelhas ao se aproximar o inverno, tem sido parte da história norte-americana desde que os europeus se assentaram nas 13 colônias originais que, por sinal, são representadas pelas 13 listras na bandeira norte-americana.
Parece maple syrup, fica nas prateleiras de todas as unidades de uma gigantesca rede de supermercados nos Estados Unidos, mas não é maple syrup. Aliás, uma recente pesquisa testou 11 tipos de maple syrup e concluiu que apenas uma marca se trata do real néctar que verte das frondosas árvores que compõem a paisagem do Canadá e de várias localidades na região onde moro, New England – especialmente em Vermont. Os demais são apenas um composto de sacarina, corantes, flavorizantes, conservantes e outros “antes” diluídos em água.
Já descrevi na coluna passada o lance do café descafeinado e sua inusitada relação com o Terceiro Reich alemão. Aliás, vou contar uma coisa: os americanos são mestres em criar coisas esdrúxulas, que vão muito além do café descafeinado, tais como: cerveja sem álcool e, pasmem, bacon de peru. Porém, talvez por falta de interesse ou por uma pesquisa de mercado que apontou para o fracasso da ideia, ainda não inventaram a “maconha desmaconhada”.
Agora, a modinha aqui nos Estados Unidos é o uso do princípio ativo oriundo de uma herbácea indígena conhecida cientificamente por cannabis sativa. Antigamente, era conhecida no Brasil pelas alcunhas de marofa, manga-rosa, lombra, chá da Rita etc.
O uso nos Estados Unidos é autorizado desde que seja para terapia médica e de forma recreacional. Além do uso médico plenamente justificável, eu sinceramente não sabia que havia outra maneira de consumir tal “produto” que não fosse recreacional. O uso recreacional é definido por consumir uma droga psicoativa para indução de um alterado estado de consciência, pelo simples desfrute de um prazer ou por outra proposta casual, como modificação de percepções, sentimentos e emoções por parte do usuário. As drogas recreacionais são divididas em três categorias: as depressivas (que induzem um sentimento de calma e relaxamento), as estimulantes (que trazem sensação de energia e ativam o estado de alerta) e as alucinógenas (que trazem distorções na percepção e alucinações). O interessante é que a cachaça pode produzir estes três efeitos de uma vez, não necessariamente nesta ordem. Na verdade, são quatro efeitos pois, além destes três, o bêbado acaba chorando, dizendo que “te considera pra caramba” e pode até tentar te beijar.
Recentemente, encontrei em Pindamonhangaba um amigo da época da Pracinha do Cruzeiro e que até hoje é adepto do uso recorrente da tal erva. O apelido dele é Carlão Cuêio (hoje entendo que o apelido foi originado pela Classe II com protrusão dentoalveolar dos incisivos superiores). Ele comentou comigo que havia iniciado um tratamento ortodôntico sensacional, segundo ele: “mutcholoko, doidera total. Cara, o lance é genial, totalmente invisível. O aparelho é invisível e o ‘ortodentista’ também”.
Pensei comigo: a marofa consumiu os poucos neurônios que ainda tentavam resistir. E perguntei como o ortodontista era invisível. Ele me respondeu: “in-vi-sí-vel, brother. Nem precisa de dentista. Eu mesmo me moldei, mandei para eles pelo correio e recebi em casa os aparelhos. Eu poderia ter ido no shopping para um tal de escaneamento, mas sou totalmente contra o shopping que foi instalado bem no campinho de futebol (conhecido por “maconhão”). E como já estou acostumado a fazer cachimbos de Durepoxi, eu mesmo me moldei”.
Voltando um pouco à questão do maple syrup: diz a lenda que o chefe Woksis, nativo americano da tribo dos Iroquois, lançou sua machadinha de encontro ao tronco de um carvalho em um dia de inverno. No dia seguinte, ele percebeu que o sol aqueceu o líquido citrino e viscoso que havia no interior do tronco, fazendo com que o syrup ficasse exposto. O que me pergunto é por que cargas d’água o grande chefe passou o dedo na misteriosa seiva e levou-a à boca? Será que ele também era da mesma tribo do Carlão Cuêio?
Aproveitando a conversa psicodélico-alucinógena, perguntei ao Cuêio o que ainda o motiva ao uso recorrente da tal erva após tantos anos. Após um trago profundo e alguns segundos de respiração presa, ele me confidenciou com uma voz apertada na garganta: “é que o azul fica mais azul, entende?”. Após soltar esta pérola, ele ficou horas olhando fixamente para o frasco azul de colírio Moura Brasil.
Confesso que não entendi. Será que o aparelho também fica mais invisível? E o “ortodentista” ficou tão invisível que acabou sumindo? Ou foi abduzido pelos Iroquois?
Mundo bizarro.
Celestino Nóbrega
Program leader do Programa Internacional de Ortodontia da Universidade de Nova York (EUA); Professor associado clínico na Case Western Reserve University (Cleveland/OH, EUA); Coordenador dos cursos de especialização em Ortodontia da Facsete, São José dos Campos/SP.
Orcid: 0000-0002-4961-1326.